SNE: como o novo marco da educação pode atingir disparidades entre estados e áreas do Brasil

SNE: como o novo marco da educação pode atingir disparidades entre estados e áreas do Brasil

Em outubro foi sancionada a Lei Complementar 220/2025, que institui formalmente o SNE, considerado por muitos como o “SUS da Educação”

Quando o SNE (Sistema Nacional de Educação) foi sancionado em 31 de outubro de 2025, tornou-se, oficialmente, a estrutura legal para organizar, pela primeira vez, de forma “federativa e nacional”, a educação básica no Brasil, que ganha um novo capítulo para a sua gestão: a articulação estruturada entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, por meio de um regime permanente de colaboração, pactuação e governança compartilhada. 

Mas, se o papel do SNE é equalizar a oferta e a qualidade da educação, o sucesso dessa empreitada dependerá de quão bem o sistema “ouve” as diferenças históricas entre regiões: desigualdades de infraestrutura, de alfabetização, de recursos para escolas e de acesso à creche, educação infantil ou ensino médio. 

A seguir, um panorama de como essas disparidades estão distribuídas, e do que o SNE precisará enfrentar para ser eficiente de fato.

Dados recentes que mostram a desigualdade por região / estado no Brasil

Segundo dados da mais recente PNAD Contínua (2024), o Brasil, mesmo com avanços, ainda tem 9,1 milhões de pessoas com 15 anos ou mais analfabetas, o que representa uma taxa de 5,3%, a menor da série histórica.

Mas, a distribuição regional do analfabetismo revela desequilíbrios gritantes: o Nordeste concentra 55,6% (cerca de 5,1 milhões) das pessoas analfabetas do país. O Sudeste responde por 22,5% desse total. 

No que tange à escolarização obrigatória (até o ensino médio), a proporção de pessoas de 25 anos ou mais que concluíram esse ciclo atingiu 56,0% em 2024, recorde desde 2016. Mesmo assim, há claras diferenças por raça e região: entre pessoas brancas, 63,4% concluíram; entre pretas ou pardas, apenas 50,0%.
Quanto à infraestrutura física e de recursos das escolas públicas, base essencial para a qualidade, o panorama é alarmante: levantamento de 2025 aponta que menos da metade das escolas públicas no país conta com tratamento de esgoto, e cerca de 20% não dispõem de coleta de lixo.

Recursos essenciais para ensino digno e moderno são escassos: conforme dados de 2023, apenas cerca de 30% das escolas públicas tinham internet com velocidade adequada para uso pedagógico.

Outros equipamentos didáticos e de aprendizagem são ainda mais raros: laboratórios de ciências estão presentes em apenas 10% das escolas públicas; laboratórios de informática em cerca de 30%; bibliotecas/salas de leitura em menos de 50%.

E na educação infantil, segundo o Censo Escolar 2024, apenas cerca de 38,7% das crianças de até 3 anos estão matriculadas em creches, longe da meta de cobertura universal prevista para essa etapa.

Esses dados mostram que, por trás das médias nacionais, há realidades muito diferentes, que variam dramaticamente conforme a região, o estado, o perfil racial e a zona urbana/rural.

O que o SNE representa para realidades tão distintas, e quais são os desafios imediatos

Com o SNE, estados historicamente marginalizados — Norte, Nordeste, áreas rurais, periferias, territórios indígenas ou quilombolas — terão um instrumento formal para reivindicar padrões mínimos de infraestrutura, financiamento e recursos. 

A lei prevê a regulação de um parâmetro de referência para investimentos por aluno, o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), levando em consideração as necessidades locais.

A institucionalização de uma base nacional de dados, a Infraestrutura Nacional de Dados da Educação (INDE), com identificador único do estudante, permitirá mapear trajetórias escolares, identificar defasagens e desigualdades e orientar políticas mais assertivas para realidades específicas.

A cooperação entre União, estados e municípios (via comissões pactuadas) pode reduzir a fragmentação histórica da gestão da educação, um problema grave em regiões onde municípios pequenos e pobres mal têm estrutura administrativa própria.

Os grandes desafios na ponta regional

O sucesso depende de recursos financeiros concretos, garantindo o CAQ (Custo Aluno-Qualidade) em estados com baixa arrecadação e alta desigualdade exigirá suplementação federal considerável. Sem esse aporte, o padrão mínimo de qualidade corre o risco de virar letra morta.

Também será essencial gestão local efectiva e fiscalização transparente, onde municípios com pouca capacidade técnica correm o risco de não implementar adequadamente melhorias de infraestrutura, recursos pedagógicos e contratações de pessoal.

A desigualdade estrutural vai além da infraestrutura. Já há déficits de escolarização plena desde a infância, como a baixa oferta de creches, o que exige que o SNE vá além da escola fundamental e médio, garantindo suporte desde a educação infantil.

Para regiões historicamente vulneráveis — Norte, Nordeste, áreas rurais/isoladas — há desafios logísticos, de transporte, de escassez de professores e de adaptação pedagógica que o SNE terá de levar em conta para ser efetivo.

O que muda na prática com o SNE

O SNE cria instâncias de governança, como a Comissão Intergestores Tripartite da Educação (Cite), uma instância de articulação do Sistema Nacional de Educação (SNE), que reúne representantes do governo federal, dos estados e dos municípios para discutir e pactuar políticas educacionais; e as Comissões Intergestores Bipartites da Educação (Cibes), uma para cada estado e Distrito Federal, para negociações subnacionais entre estados e municípios.

Esses colegiados devem definir parâmetros, diretrizes e responsabilidades de cada ente na execução das políticas educacionais, reforçando a coordenação e evitando sobreposições de atribuições. 

Planejamento e monitoramento integrados

O SNE prevê um sistema de dados estruturado, com mecanismos de registro e acompanhamento do percurso escolar dos alunos, da creche até o ensino superior. 

Esse mecanismo deve facilitar, não apenas a elaboração de políticas, mas, também, o diagnóstico de desigualdades, lacunas estruturais, fluxos de evasão ou abandono e necessidades específicas por região. 

Financiamento e padrão mínimo de qualidade

Um dos pontos centrais do SNE é a institucionalização do CAQ como referência de investimento por aluno da rede pública, considerando jornada escolar, proporção aluno-professor, formação docente, infraestrutura física e pedagógica, tecnologia e serviços de apoio, entre outros requisitos de qualidade. 

Com o CAQ, o Estado (nas suas diversas instâncias) terá um critério mais claro para definir quanto deve investir por estudante, o que pode reduzir desigualdades entre escolas, redes e regiões, e garantir um padrão mínimo de atendimento e recursos. 

Ampliação do alcance e da equidade

Entre os objetivos declarados do SNE estão a universalização da educação básica, erradicação do analfabetismo, equalização das oportunidades educativas, respeito à diversidade (educação indígena, quilombola, do campo, populações vulneráveis), e a valorização de profissionais da educação. 

Esses compromissos colocam como meta uma oferta de educação digna, de qualidade e igualitária para todas as regiões e comunidades do país, algo há muito reivindicado por especialistas e movimentos sociais. 

Por que a aprovação agora é histórica?

A ideia do SNE não é nova, e está prevista constitucionalmente como regime de colaboração entre os entes federados. Mas faltava regulamentação clara e permanente. 

O projeto atual (PLP 235/2019) foi aprovado no Senado em 2022, mas demandou três anos de tramitação na Câmara até ser aprovado em setembro de 2025. Com as mudanças no texto, retornou ao Senado e, finalmente, foi sancionado. 

Para especialistas, trata-se de uma “pedra angular” para a educação brasileira: pela primeira vez, o país passa a ter uma política nacional estruturada, com governança, financiamento, regras mínimas e compromisso com equidade. 

O que os dados e projeções indicam 

Embora o SNE esteja recém-sancionado, já há dados e projeções que ajudam a dimensionar a urgência da lei.

Segundo estimativas recentes, o Brasil ainda convive com desigualdades graves de infraestrutura, falta de recursos, e variação brutal da qualidade de ensino entre estados e municípios, o que torna urgente um critério nacional de padrão mínimo.

A adoção do CAQ poderá exigir investimentos pesados dos entes federativos. A longo prazo, isso pode significar aumento de recursos públicos destinados à educação, melhores condições de trabalho para professores e ampliação da oferta educativa.

A integração de dados via registro unificado do estudante e sistemas de monitoramento poderá permitir, pela primeira vez, acompanhar trajetórias escolares de forma nacional, avaliar resultados, identificar evasão, defasagem e desigualdades, e subsidiar políticas com evidência concreta.

Por fim, a expectativa é que o SNE favoreça a expansão da educação compensatória, atendimento a populações vulneráveis (indígenas, quilombolas, áreas rurais), e a universalização da educação básica com padrões dignos de qualidade, independentemente da renda ou local de origem.

O que torna o SNE uma pauta essencial para 2026

Para quem acompanha educação, comunicação e jornalismo: a institucionalização do SNE representa um novo marco, e uma oportunidade para debater fortemente as desigualdades históricas, exigir transparência e acompanhar a implementação concreta das promessas.

A convergência entre diferentes níveis de governo, o desenho de política pública nacional, os dados públicos, o financiamento e o padrão mínimo de qualidade abrem espaço para pautas profundas: desde análise da infraestrutura em municípios pequenos até a valorização docente, financiamento público e ausência de desníveis regionais.

Para os próximos anos, torna-se imprescindível acompanhar a regulamentação do CAQ, a formação das comissões intergestoras, a consolidação dos sistemas de dados, a alocação orçamentária, e a real implementação da lei nas escolas do país.