Mentes vulneráveis: a urgência dos Neurodireitos na proteção digital de crianças

Mentes vulneráveis: a urgência dos Neurodireitos na proteção digital de crianças

A crescente integração de tecnologias digitais na vida cotidiana trouxe benefícios indiscutíveis para a sociedade, mas, também, impôs desafios éticos, legais e sociais que exigem atenção urgente, especialmente, quando envolvem crianças e adolescentes.

Em particular, o uso de sistemas algorítmicos com capacidade de personalização comportamental tem suscitado preocupações relacionadas à proteção da saúde mental e ao desenvolvimento neurológico de usuários em fase de formação.

Pesquisas apontam que o cérebro humano continua em desenvolvimento até aproximadamente os 25 anos de idade, sendo o córtex pré-frontal, região associada ao controle de impulsos, tomada de decisão e pensamento crítico, uma das últimas áreas a amadurecer.

Essa janela de vulnerabilidade neurológica pode ser impactada negativamente por mecanismos digitais de recompensa intermitente, notificações constantes e estímulos sensoriais contínuos, comuns em plataformas digitais de grande alcance.

Diversos sistemas algorítmicos, ao detectar padrões de comportamento e emoção, conseguem adaptar conteúdos e interações de forma altamente personalizada e, em contextos sensíveis, como o de adolescentes que vivenciam situações de ansiedade, insegurança ou baixa autoestima, essa
hiperpersonalização pode contribuir para ciclos de dependência digital e até mesmo a amplificação de vulnerabilidades já existentes.

O arcabouço normativo brasileiro oferece bases relevantes para lidar com esse fenômeno, a começar pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que assegura a proteção integral, incluindo a dignidade, o respeito e a inviolabilidade da integridade psíquica e emocional. Sob a mesma perspectiva protetiva, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), estabelece salvaguardas específicas para o tratamento de dados de crianças.

No plano internacional, o Comentário Geral nº 25 da ONU, aprovado pelo Comitê dos Direitos da Criança, reconhece expressamente que crianças são particularmente vulneráveis a práticas manipulativas de design digital e que a publicidade comportamental direcionada a menores deve ser proibida.

Nesse contexto, os chamados Neurodireitos vêm ganhando destaque como um novo conjunto de garantias fundamentais voltadas à proteção da mente humana frente ao avanço das neurotecnologias e da inteligência artificial.

Dentre os principais direitos propostos por estudiosos da área, destacam-se: o direito à privacidade mental; a proteção da identidade pessoal; a preservação do livre arbítrio; a equidade no acesso às tecnologias cognitivas e a proteção contra vieses algorítmicos.

O Chile foi o primeiro país do mundo a reconhecer constitucionalmente os neurodireitos, em 2021, estabelecendo o respeito à atividade cerebral e o direito à autodeterminação mental como princípios invioláveis do desenvolvimento tecnológico. A regulamentação chilena exige, ainda, transparência algorítmica, consentimento informado e medidas específicas de proteção a populações vulneráveis, como crianças.

No campo normativo e ético, as Recomendações da UNESCO sobre a Ética da Inteligência Artificial também representam importante referência, estabelecendo princípios como não maleficência, explicabilidade e justiça algorítmica.

No Brasil, embora o debate ainda seja incipiente, o contexto atual oferece oportunidade estratégica para avançar, podendo a consolidação de um marco legal específico sobre neurodireitos incluir o reconhecimento constitucional da proteção à atividade mental; a proibição de técnicas algorítmicas manipulativas voltadas a crianças e adolescentes; a regulamentação da Autoridade Nacional
de Proteção de Dados (ANPD) sobre dados neurais e biomarcadores cognitivos; a exigência de auditorias algorítmicas independentes e a inclusão de temas como neuroética e cidadania digital na pauta escolar.

A implementação de medidas protetivas deve ocorrer por meio de uma abordagem multissetorial, que envolva o poder público, setor privado, academia, famílias, escolas e sociedade civil, com base em evidências científicas e de forma compatível com o avanço tecnológico, porém não com o
objetivo de impedir a inovação, mas de garantir que ela se desenvolva de maneira ética, segura e centrada no ser humano.

Nesse cenário, as escolas não estão sozinhas, e tampouco são responsáveis por resolver todos os desafios trazidos pela era digital. Mas seu papel como ambiente formativo, acolhedor e reflexivo é essencial para que crianças e adolescentes desenvolvam competências que os ajudem a navegar com mais autonomia e segurança pelo mundo conectado, formando consciências críticas desde cedo.

O uso de tecnologias digitais na educação pode, e deve, ser uma aliada do desenvolvimento humano, desde que guiado por princípios éticos.

Práticas como pactos de convivência digital, momentos de desconexão conscientes, atividades interdisciplinares sobre o impacto dos algoritmos e rodas de
conversa sobre bem-estar digital são estratégias simples e eficazes, já adotadas em muitas escolas brasileiras com resultados positivos.

O que se propõe não é um novo fardo, mas a valorização do papel educativo da escola, em parceria com famílias e plataformas.

Temas como neuroética, cidadania digital, uso seguro das redes sociais e pensamento crítico sobre conteúdos digitais precisam estar presentes na rotina escolar, não como disciplinas extras, mas como conteúdos transversais que se conectam com habilidades socioemocionais, linguagens, ciências humanas e naturais, fortalecendo a missão da escola de formar cidadãos íntegros, empáticos e preparados para os desafios do século XXI.

A proteção da mente em desenvolvimento é uma responsabilidade compartilhada. E, diante da velocidade com que a tecnologia avança, cada passo conjunto informado, consciente e empático ajuda a construir um futuro mais saudável, justo e resiliente para as novas gerações.