Ícone do site Educação & Tendências l Onde o presente da educação encontra o futuro

Alfabetização midiática e combate às fake news desde a educação básica: um desafio urgente para a formação cidadã

Alfabetização midiática e combate às fake news desde a educação básica: um desafio urgente para a formação cidadã

Especialistas espanhóis mostram a importância de ensinar crianças e jovens a identificar desinformação e usar a mídia com responsabilidade

Clique aqui e leia a versão em espanhol!

Vivemos na era da informação. Nunca foi tão fácil ter acesso a conteúdos de todo tipo, em diferentes formatos, a qualquer hora e lugar. 

Mas, junto com a democratização do acesso, assistimos também a um fenômeno preocupante: a proliferação das chamadas fake news. Notícias falsas, desinformação deliberada, teorias da conspiração e manipulação digital se tornaram parte do nosso cotidiano — com impactos sociais, políticos e até sanitários, como ficou evidente durante a pandemia da Covid-19. 

Nesse cenário, a escola tem um papel fundamental: formar cidadãos capazes de ler criticamente o mundo e de distinguir informação de manipulação. É aí que entra a alfabetização midiática, uma competência que precisa ser desenvolvida desde a educação básica.

A alfabetização tradicional — a capacidade de ler e escrever — já não basta para preparar crianças e jovens para os desafios contemporâneos. É preciso ir além: ensinar a ler criticamente textos, imagens, vídeos e mensagens publicadas nas mídias tradicionais e, principalmente, nas redes sociais. 

Alfabetização midiática: um agrupamento de competências

A alfabetização midiática consiste justamente nesse conjunto de habilidades: compreender como a mídia funciona, interpretar conteúdos, questionar fontes, identificar intenções por trás das mensagens e refletir sobre os efeitos dessas mensagens na sociedade.

No Brasil, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) já aponta a competência geral de cultura digital, que prevê que os estudantes usem as tecnologias para comunicar-se, acessar e produzir informações e conhecimentos de forma crítica, significativa e ética. 

Mas, o caminho ainda é longo para que essa diretriz seja, de fato, incorporada à prática pedagógica cotidiana. Muitos professores ainda não receberam formação específica para trabalhar essas competências e, em muitas escolas, o acesso à internet é precário. Ainda assim, há experiências bem-sucedidas que mostram como é possível — e urgente — começar.

“Crianças e adolescentes devem desenvolver o pensamento crítico, que permitam a eles questionarem a veracidade dos conteúdos que consomem. Isso inclui habilidades como verificação de fontes, compreensão do contexto, diferenciação entre fatos e opiniões, e a capacidade de identificar preconceitos ou intenções por trás de uma informação. Além disso, devem aprender a gerir suas emoções diante de conteúdos manipuladores, bem como refletir sobre o impacto que tem compartilhar informações falsas ou sensacionalistas”, ressalta Carmen Marta Lazo, vice-reitora de Comunicação e Identidade institucional e catedrática na Universidad de Zaragoza, na Espanha; e investigadora principal no Grupo GICID (Grupo de Investigación en Comunicación e Información Digital), da Universidad de Zaragoza.

Por outro lado, Jose Antonio Gabelas Barroso, professor titular de Comunicação Audiovisual e Publicidade, investigador, também, da Universidad de Zaragoza; e cofundador do Grupo GICID, reforça que primeiro é preciso distinguir entre crianças e adolescentes, e orienta para um trabalho efetivo.

“Com crianças, pode-se trabalhar de uma forma mais planejada e eficaz o campo da prevenção frente ao uso abusivo ou mau uso da tecnologia. Com os adolescentes já nos deparamos com certos maus hábitos que são necessários enfrentar. Quando falo de prevenção, não me refiro apenas ao que significa prevenir comportamentos de risco (bulliyng, dependências, transtornos de atenção, possíveis alienações,  consumo acrítico), mas, também, à promoção da saúde. Ou seja, um plano de alfabetização midiática deve compreender o bem-estar integral do menor e do usuário”.

Atividades estratégicas desde a Educação básica

Entre as estratégias que podem ser adotadas desde a educação básica estão, por exemplo, atividades de análise crítica de manchetes, comparação de notícias em diferentes veículos sobre o mesmo fato, debates sobre a influência dos algoritmos das redes sociais, exercícios de checagem de fatos com base em sites especializados e até projetos de produção midiática pelos próprios estudantes. 

Quando os alunos criam blogs, vídeos, podcasts ou memes, por exemplo, passam a compreender os mecanismos de construção de mensagens e se tornam mais atentos aos que recebem.

Além do desenvolvimento do pensamento crítico, a alfabetização midiática também promove valores essenciais para a convivência democrática, como o respeito ao outro, a empatia e a ética. 

Afinal, uma das consequências mais nocivas das fake news é o estímulo ao ódio e à intolerância. Ensinar as crianças e adolescentes a checar informações antes de compartilhá-las e a pensar nas consequências de suas postagens é também formar cidadãos responsáveis.

“O fomento da atitude crítica, que é muito mais do que o pensamento crítico, pois abrange toda a pessoa, não só seu raciocínio, precisa de uma abordagem da alfabetização multiperspectiva. Ou seja, que compreenda a tecnologia, seus meios, telas e redes como objeto de análise e estudo, como ferramenta ou instrumento de aprendizagem e como espaço de expressão e comunicação colaborativas. Esta abordagem tripla funciona de uma forma simultânea, não-linear, conectiva e lúdica”, orienta Jose.

Já Carmen acrescenta que a alfabetização midiática não depende, exclusivamente, da tecnologia. 

“Mesmo em contextos com recursos limitados, é possível trabalhar com notícias impressas, debates, análises de textos e atividades comparativas. Por exemplo, peça aos alunos que comparem manchetes sobre um mesmo fato, que analisem como uma imagem pode mudar a percepção de uma notícia, ou que simulem a redação de notícias com diferentes enfoques. O uso de jogos de papel, onde os alunos assumem o papel de jornalistas, editores ou verificadores, também é muito eficaz para incentivar um olhar crítico”, enfatiza a vice-reitora.

A crucial importância da família 

Outro ponto importante é envolver as famílias nesse processo. Pais e responsáveis também precisam ser conscientizados sobre a importância da educação midiática e orientados a dialogar com os filhos sobre o uso consciente das mídias digitais. 

Afinal, muitas vezes, as fake news circulam justamente nos grupos familiares, reforçando preconceitos e desinformação.

“O papel das famílias é fundamental. As crianças aprendem observando e dialogando, por isso, o ambiente em casa deve incentivar a curiosidade, o questionamento e a conversa reflexiva. Pais e cuidadores não precisam ser especialistas em mídia, mas podem acompanhar seus filhos perguntando, por exemplo: quem diz isso? Por que você diz isso? De onde o tiraram. Eles podem compartilhar, também, conteúdo de qualidade, modelar um uso responsável das redes sociais e estar atentos ao que consomem e compartilham em casa, já que seu comportamento é uma referência”, ensina Carmen.

Segundo Gabelas, que também é coautor do livro La invasión del algoritmo, acrescenta, ainda, que esta participação é ainda mais fundamental nos estágios iniciais das crianças, já que aprendem a linguagem de seus pais, ouvindo-os e dialogando com eles. E salienta sobre um olhar refinado para a tecnologia.

“Crianças e adolescente precisam aprender comportamentos saudáveis e responsáveis diante das telas, a partir do exemplo dos pais. A pauta que têm que marcar as famílias para uma dieta digital é necessária para evitar posteriores comportamentos de risco. A atitude crítica, sempre com a dúvida metódica, é o modo de estarmos preparados para não sermos confundidos com as fakes news. Um dos aspectos essenciais é colocar o foco nas consequências do uso e mau uso da IA, considerando que os algoritmos são caixas pretas que você tem que decifrar e abrir para ser cidadãos conscientes, críticos e participativos. 

Exemplos de países que já incluíram a Alfabetização Midiática em suas rotinas escolares

Países como Espanha, Finlândia, Canadá e Austrália já avançaram bastante na inclusão da alfabetização midiática como política pública educacional. 

No Brasil, iniciativas de organizações da sociedade civil, universidades e algumas redes de ensino já começam a dar frutos, mas é preciso mais investimento, capacitação docente e políticas articuladas entre educação, comunicação e cultura.

“O Brasil é o berço da educomunicação, conta com o privilégio dos fundamentos que construiu Paulo Freire e com uma universidade que dispõe de um grau em educomunicação. Tivemos a oportunidade de compartilhar uma conferência na Universidade de São Paulo, e experimentar a enorme sensibilidade diante deste tema. Grande parte da América Latina dispõe de experiências significativas, desde redes de rádio local, até projetos e programas de alfabetização midiática, que são plataformas para fomentar a cidadania crítica frente ao poder dos estados e do mercado” relata Jose.

Carmen, dá como exemplo, um programa em seu país natal, a Espanha, que trouxe resultados efetivos .

“Um exemplo notável que posso citar é o projeto de alfabetização midiática do modelo de Tecnologias da Relação, a Informação e a Comunicação (TRIC) utilizado em vários centros educativos de Aragão (Espanha) para ensinar os alunos a analisar meios de comunicação, identificar desinformação e compreender o papel do jornalismo na democracia. Como resultado da implementação deste projeto, foi demonstrado que, com bons recursos pedagógicos, é possível transformar a forma como as crianças e jovens interagem com os meios de comunicação”, explana.

Jose também traz a luz, ações que eles realizam mundo afora, pelo grupo GICID, referência na Espanha na promoção e difusão da alfabetização midiática.

“Temos a plataforma Factor Relacional, que é como um diário e reflete os projetos e experiências que realizamos. A Carmen e eu, nos dois últimos anos, organizamos onze congressos internacionais neste sentido, incorporando a IA generativa. Em outubro, teremos a IV jornada da “Hora de la verdad”, onde a desinformação se torna o foco de análise e trabalho”. 

Ainda há muitos desafios, mas também há como superá-los

Não basta combater as fake news com checagens pontuais ou com censura; é necessário criar uma nova cultura de consumo consciente da informação, e isso se faz com educação. 

Começar cedo, na educação básica, é a melhor estratégia para garantir que as próximas gerações sejam mais preparadas para lidar com a avalanche de informações que enfrentam diariamente. 

Jose Gabelas entre as adversidades na implementação da alfabetização midiática estão alcançar um pacto de estado em cada país, entre as diferentes instituições (sociais, educacionais, sanitárias), meios de comunicação, com suas redes e plataformas, e uma visão política não rentista a longo prazo. 

Carmen complemente enfatizando sobre a necessidade de formação adequeda para os educadores, que precisam do apoio irrefutável dos gestores escolares.

“Um dos principais desafios é a falta de formação específica dos professores nesta área, somada aos currículos escolares que ainda não integram a alfabetização midiática de forma transversal. Também há certa resistência institucional e política para promover uma cidadania mais crítica, especialmente em contextos polarizados. Para superar esses obstáculos, é fundamental incluir a alfabetização midiática nos planos de formação docente, promover alianças entre ministérios, universidades e organizações sociais, e demonstrar, com evidência, que uma cidadania informada e crítica é essencial para fortalecer a democracia”, finaliza.

A alfabetização midiática não é mais um luxo ou uma “moda” pedagógica: é uma necessidade urgente. É preparar nossas crianças e jovens para serem não apenas leitores críticos, mas, também, produtores éticos e responsáveis no vasto ecossistema informacional em que estamos imersos. 

Combater as fake news não é apenas uma questão técnica: é um compromisso com a verdade, com a cidadania e com a democracia. E tudo isso começa na escola.

Sugestão de leituras

La alfabetización mediática, vacuna ante la desinformación en la era de las TRIC – (Carmen Marta-Lazo)

Guia da Educação Midiática (Ana Claudia Ferrari, Mariana Ochs, Daniela Machado)

Manifesto pela educação midiática (David Buckingham, Januária Cristina Alves, José Ignácio Mendes)

Aprendizagem Midiática Informacional (Rogério Joaquim Santana)

Curadoria educacional: práticas pedagógicas para tratar (o excesso de) informação e fake news em sala de aula (Marilene Santana dos Santos Garcia e Wanderlucy Czeszak)

A Educação Midiática (Paulo Migliavacca)

Sair da versão mobile